cinquenta e cinco, 2013

Fotografias originais de Mário Rennó feitas em 1958
Fotografias atuais de Rosângela Rennó e Daniela Seixas
Reproduções de Thiago Barros
ensaio para Revista Zum #4, 2013
Original photographs by Mário Rennó taken in 1958
Current photographs by Rosângela Rennó and Daniela Seixas
Reproductions by Thiago Barros
essay for Zum Magazine #4, 2013




Meu pai era engenheiro e o fotógrafo oficial da família. Chegou a ter uma das lendárias Leica M3, vendida em 1950 para um colega cujo nome nunca descobri, que também era professor da Escola de Engenharia. Sobraram apenas os manuais de instrução, em casa, e a frustração por jamais ter conseguido reavê-la. Com o dinheiro da venda, ele trouxe da Europa uma Rolleiflex 6 x 6 e uma Ricoh 35 mm, as câmeras que conheci, sempre presentes nas festas e nos rituais de passagem da família.

Quando era pequena, adorava vê-lo fotografar. Não entendia muito bem um aparelhinho que aparecia em cena antes do posicionamento da câmera. Era o fotômetro, irritante, que atrasava a execução da foto, ainda que fizesse parte daquela magia toda: a parafernália mecânica, os filmes cuidadosamente guardados em papel de seda, os projetores, as caixas metálicas cheias de slides. E havia os filtros e as lentes. Várias cores e tamanhos. Lindos.

Slides sempre me fascinaram, principalmente os da viagem que meus pais fizeram pelos Estados Unidos, de costa a costa, em 1958. Não sei se porque continham paisagens exóticas, anteriores ao meu nascimento, ou porque mostravam uma intimidade entre meu pai e minha mãe que eu desconhecia, ou simplesmente porque jamais os vi projetados na parede, como deveria acontecer. Até hoje, quando os manuseio, meu olhar parece ser sugado por aquelas delicadezas transparentes, e penso no fascínio que meu pai tinha pelos carros e trens, pelos neons, pela organização das cidades, todos aqueles ícones da modernidade e do progresso.

Meu cérebro de criança foi alimentado com os templates da época: A Feiticeira, Jeannie é um gênio, Bonanza e Chaparral. Lembro-me de achar que os seriados tinham um quê daquilo tudo que eu via ali, nas minhas mãos, mas percebia que lhes faltava algo que os slides tinham de sobra: certa suprarrealidade, decorrente do olhar de alguém que estava tão próximo, mas fora tão longe, há tanto tempo.

Os Ektachromes, deteriorados pela ação do tempo ou dos fungos, ou convertidos em lindos monocromos, ganharam linhas e cores estranhíssimas. Já os Kodachromes mantiveram um frescor cromático quase diabólico. Como se o tempo não pudesse corromper, em absoluto, aquelas imagens; linhas e contornos gravados na emulsão, como se uma pedra lançada num lago produzisse ondas que fossem repentinamente paralisadas, para sempre.

Desde a morte do meu pai, em 1987, tornei-me a herdeira oficial desses slides, que guardo com os outros registros fotográficos feitos por ele. Gosto de revisitá-los regularmente, da mesma maneira, com meus olhos de peixe ou de aumento, tentando inventar situações improváveis, mas não impossíveis, de pertencimento e contiguidade.

Cinquenta e cinco anos se passaram, e as ondas naquele lago continuam lá. Paradas. Como se não tivessem passado nem cinco milésimos de segundo. É muito bom contar com isso.

RENNÓ, Rosângela. Cinquenta e cinco. In Zum #4. Instituto Moreira Salles, 2013, p. 86 - 107.



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